Forno! Na boca do forno SVG: calendario Publicada em 29/11/2023 SVG: views 2705 Visualizações

"O embate às mudanças climáticas não se dará tratando as principais questões com superficialidade e invisibilidade."

O verão que se aproxima promete altas temperaturas. Setembro foi escaldante, o que já coloca 2023 como sendo o ano mais quente da história. Forno! Na boca do forno! Porém, quando se fala em mudanças climáticas, não é apenas o calor que preocupa. A combinação do El Niño com as transições climáticas tem intensificado secas e tempestades. Há muitos outros sinais graves provocados por essas alterações: extinção de espécies, redução de reservas hídricas, comprometimento da produção de alimentos, acidificação e elevação do nível dos mares, aumento da desigualdade, da pobreza e da fome mundiais, para citar alguns.

O El Niño é um fenômeno natural que se caracteriza pelo aquecimento das águas do Oceano Pacífico Equatorial, porém, os efeitos têm se agravado em decorrência das mudanças climáticas. Ele altera a formação das chuvas, a circulação dos ventos impactando diferentemente as regiões da América do Sul e, consequentemente, o Brasil. Em 2023, o evento está sendo chamado de Super El Niño. O calor do sol devido ao aumento da concentração dos gases de efeito estufa (GEEs) acumula mais energia na atmosfera do planeta fazendo com que muitos processos ocorram com maior intensidade.

A teimosia e a miopia humanas insistem em não enxergar as evidências. O Rio Grande do Sul tem sido assolado nos últimos meses, quase que semanalmente, por enchentes avassaladoras. Catástrofes que mantém as pessoas fora de suas casas por longos períodos, seja pelo nível das águas que em algumas regiões ainda permanece elevado, seja pela destruição total das moradias. Sonhos e histórias que em uma fração de segundos submergem à força das águas. Vidas que dificilmente se recompõem. As marcas são profundas. Passado o impacto momentâneo e as campanhas de ajuda restam as dores, o desânimo e as marcas que vão além do nível da água e dos objetos perdidos. Vidas e conquistas que se apagam para sempre.

O homem é o principal causador. O padrão de desenvolvimento centrado na exploração desconhece a limitação dos bens naturais. Ailton Krenak diz que o homem branco trata “a natureza como um almoxarifado”, cuja retirada vai além da necessidade de subsistência. Não há bens suficientes que aplaquem a ganância. Ao contrário, quanto mais é retirado, maior é o desejo de explorar. Os bens são tratados como recursos – meios ou custeios que atendem e suprem necessidades. Esse modelo tem levado à falência da humanidade e ao esgotamento da natureza. Os mais prejudicados são os mais vulneráveis. Os maiores poluidores sejam países ou empresas, driblam as consequências. Chegam ao ponto de investir vultuosos esforços e somas em missões espaciais com a esperança de que, destruindo esse mundo irão encontrar outro para continuar sua prática exploratória.

Os combustíveis fósseis – carvão, petróleo e gás, estão entre as principais causas, no entanto os esforços para o banimento beiram a inércia. Cientistas do IPCC, sigla em inglês do Painel Intergovernamental para as Mudanças Climáticas, reforçam a cada relatório esse aspecto. Continuamos ineptos para tirar lições dos nossos erros. José Lutzemberger, em 1974, por ocasião de uma enchente disse: “Somos incapazes de aprender com nossos erros. As advertências climáticas de nada valem. Insistimos no consumo do nosso futuro”. São praticamente cinquenta anos dessa afirmação e não mudamos. Me atrevo a complementar o pensamento do grande mestre da ecologia – insistimos também em consumir o nosso presente.

Para limitar o aquecimento global em 1,5 oC, as emissões dos GEEs devem ser reduzidas em 43% até 2030; 60% até 2035. Culminando em 2040, com 69%. Estamos longe de alcançar esses índices considerando a política mundial em relação aos combustíveis fósseis. A exploração de novas reservas em diversas regiões do Brasil, em especial na foz do Amazonas e a prorrogação dos incentivos ao carvão mineral no Rio Grande do Sul rondam as catástrofes que toda semana assolam, pelo menos, uma região do país. Os níveis dos Rios Negro e Solimões alcançaram os mais baixos da história, desde que as medições foram iniciadas. “Os rios estão se escondendo”, explica Krenak, por causa da poluição e da exploração sem limites. Enquanto, a Região Norte sofre com a estiagem, o Rio Grande Sul enfrenta as consequências da persistência das enchentes.

As ações para o enfrentamento das catástrofes climática limitam-se a atenuar de forma parcial os efeitos, as consequências. A inversão que subestima causas sacrifica vidas, destrói histórias e consome vultuosos recursos financeiros. Falar em transição energética justa insistindo nos combustíveis fósseis é brincar de faz de conta. É nos aproximar do ponto de inflexão. É trilhar um caminho sem volta. É gracejar com o fim dos tempos. É desafiar as previsões de “A terra inabitável – uma história do futuro” de David Wallace-Wells. Não há mais tempo para transição. Esperamos demais! O temor é de que seja muito tarde para desacomodar o paquiderme econômico que faz de conta que não vê o fim se aproximar.

Ao banimento dos combustíveis fósseis, soma-se a necessidade de ações para acabar com o desmatamento, para recuperar áreas degradadas e para reduzir a quantidade e a complexidade dos resíduos gerados pelas atividades humanas. Em menos de um ano, sete meses, consumimos o que deveria garantir a nossa sobrevivência por trezentos e sessenta e cinco dias. A espécie humana tem causado enorme sobrecarga ao planeta, ano após ano. Consumimos mais do que a capacidade da Terra se recompor. Agimos desconsiderando os limites. É um infinito extrai e descarta, extrai e descarta ... Nosso consumo insustentável é agravado pela baixa taxa de reciclagem. Somente 3% dos resíduos recicláveis volta ao ciclo produtivo. Os outros 97% são destinados aos aterros ou são enviados aos lixões ou permanecem na natureza até que se cumpra o tempo de decomposição. Alguns, como os plásticos e os vidros atravessam gerações para se degradar. Demoram séculos!

O crescimento das áreas desmatadas para atender o devastador modelo do agronegócio contribui para a extinção da biodiversidade e o envenenamento dos reservas hídricas, do solo e do ar, além de para o aumento das doenças. Sob a justificativa de produzir alimentos colaboram para a destruição da floresta, dos biomas brasileiros, dos povos tradicionais semeando desigualdade, violência, fome e devastação. Deixam um rastro de morte por onde passam e se instalam. Um modelo que priorize a preservação e a conservação não só é necessário, como é possível. Conciliar os rios, as águas com pureza, os habitantes das florestas e os ribeirinhos, os peixes, as aves, as matas, a fertilidade do solo, o ar com qualidade é mais urgente do que expandir a produção para alimentar a balança de exportação e sacrificar vidas.

O embate às mudanças climáticas não se dará tratando as principais questões com superficialidade e invisibilidade. São quesitos que desafiam nosso dia a dia e a sobrevivência na Terra. Desigualdades e injustiças de todo tipo, social, econômica, ambiental, de gênero, aumentam no mundo à medida que as soluções são adiadas. Chega de desculpas! Esperar que os outros ajam para depois agir é abreviar o futuro das próximas gerações. É transferir um legado insolúvel. Não dá mais para ficar olhando e lamentando as desgraças. Mesmo que as soluções definitivas estejam nas mãos das grandes empresas e dos países mais poluidores é preciso agir. Acredito nas pequenas ações.

O que cada um de nós pode fazer, em vez de ficar assistindo discussões, promessas e tratados que não passam de meros acordos que não se concretizam? É urgente:

– um novo padrão de consumo que reflita sobre as reais necessidades sem se deixar iludir por falsas promoções, cuja intenção é incentivar o comprar cada vez mais;

– priorizar empresas locais e pequenos produtores;

– conhecer o ciclo de produção dos produtos evitando ultraprocessados e alimentos com agrotóxicos;

– reduzir o consumo de carne vermelha. Um dia sem carne, seja segunda-feira ou um dia qualquer, faz diferença sim;

– adquirir bens com maior ciclo de vida e que atendem os princípios da logística reversa;

– separar e destinar adequadamente os resíduos gerados fechando ciclos, de tal forma que os orgânicos sejam compostados ou tratados em biodigestores, os recicláveis voltem ao processo e somente os rejeitos sejam destinados aos aterros. É inadmissível que o ciclo dos resíduos, ilusoriamente, se complete com o saco preto deixado na calçada;

– incluir ao lado do princípio dos 3 Rs (reduzir, reusar e reciclar) outros tantos Rs quantos sejam necessários – refletir, recusar, reformar;

– aumentar nossa participação política e social de tal forma, que nossos anseios por um mundo melhor e com mais igualdade sejam de fato representados.

Medidas de impacto global não são dispensadas diante da lista de ações singelas que estão ao nosso alcance. David Wallace-Wells assegura: “Você pode escolher a sua metáfora. Mas não pode escolher o planeta, o único que cada um de nós chamará de lar”.