Delfim Netto, o economista da ditadura militar Publicada em 04/09/2024 375 Visualizações
“Com o AI-5 fiz tudo aquilo que queria fazer” disse, em 1990, o ex-ministro da Fazenda da ditadura militar, Antônio Delfim Netto. Por capricho do destino, ele morreu este ano na véspera do “dia do economista”. Figura controversa à direita e à esquerda: para a direita, foi o herói que criou o chamado “Milagre Econômico”; para esquerda, foi conivente com a tortura e um dos signatários do nefasto Ato Institucional nº5, que deu amparo legal aos “anos de chumbo” do regime.
O AI-5 foi um decreto da ditadura militar de 1968, do governo Costa e Silva, que conferiu ao presidente da república o poder de decretar a intervenção nos estados e municípios, suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais. Na reunião dos ministros com o presidente, Delfim foi um dos poucos que falou em favor da medida, junto com o então ministro da Educação (Jarbas Passarinho) que disse que já era hora de “mandar às favas todos os escrúpulos”. A partir daí, no dizer de Elio Gaspari, o país passou a viver uma “ditadura escancarada”.
Descendente de italianos, Delfim Netto nasceu no bairro do Cambuci, bairro industrial e de classe média na capital paulista. Estudou na Universidade de São Paulo (USP), onde concluiu seu doutorado com uma tese sobre o café. Foi Professor Emérito da Faculdade de Economia e Administração da USP. Em 1983, tornou-se professor titular de “Análise Macroeconômica”, na mesma instituição. Possivelmente, por causa de sua carreira na administração pública e na política, não deixou uma produção científica compatível com a fama de economista mais conhecido do país. Esse reconhecimento perdurou até a sua morte, pois sempre se manteve ativo, seja no setor público, seja no setor privado, até os 93 anos de idade.
Entretanto, na vida profissional, a escalada de Delfim até tornar-se “Czar da Economia”, foi rápida. Começou como Office Boy numa empresa multinacional fabricante de produtos de higiene pessoal (Gessi-Lever). Daí por, diante, foi “um pulo” até chegar ao Ministério da Fazenda, cargo que exerceu entre 1969 e 1974. Antes, porém, foi secretário de Fazenda em São Paulo. Em 1967, Delfim foi convidado por Costa e Silva para ocupar o cargo de Ministro da Fazenda. Em 13 de dezembro de 1968 votou a favor do AI-5, sugerindo inclusive um aprofundamento do poder do presidente de intervir na economia.
Tentou chegar ao governo do estado de São Paulo, ainda durante a ditadura pelo partido oficial (ARENA), mas, segundo Elio Gaspari, foi vetado por Ernesto Geisel, que não gostava dele. Acabou sendo recompensado com a Embaixada em Paris, cidade onde adquiriu muitos livros nos sebos e livrarias locais e que iriam fazer parte do seu acervo pessoal que, alguns anos antes de sua morte, iria doar para a universidade.
O “Milagre Econômico”, sem dúvida, foi um período de grande prosperidade econômica, com o Produto Interno Bruto (PIB), nos anos do auge (1970-1973), crescendo cerca de 10% e o setor industrial, em média, 14%. Números extraordinários em comparação com as taxas de crescimento verificadas desde os anos 1980 para cá. Mas como foi que Delfim tirou “esse coelho da cartola”? Acontece que o capitalismo vivia uma fase de expansão em escala mundial, alavancado pelo baixo preço do petróleo. Internamente, o amadurecimento de grandes projetos de investimento do governo militar começava a dar frutos.
Nesse círculo virtuoso do investimento, o emprego aumentava e a renda crescia. O multiplicador dos gastos do governo era maior do que 1, ou seja, cada real investido gerava uma receita maior que o gasto. O salário médio também cresceu, porém, o mesmo não acontecia com os salários mais baixos, que eram corrigidos abaixo da inflação. Em 1973, a inflação oficial foi de 15%, porém, a inflação verdadeira teria sido de 24%. Esse descompasso colocou Delfim na “linha de tiro” dos sindicatos e seria uma mancha na sua reputação que nunca o abandonaria. Como resultado, aumentava a concentração da renda em mãos das classes mais favorecidas.
A essa altura, cabe destacar algo intrínseco da personalidade de Delfim Netto: a rapidez do pensamento. Sempre tinha uma resposta preparada para “desarmar” o interlocutor. Quando alguém lhe perguntava sobre concentração de renda, por exemplo, usava a famosa metáfora do bolo que qualquer confeiteira entende: é preciso, primeiro, deixar o bolo crescer para depois distribuir.
Acho que Delfim aproveitava a notória simpatia da sociedade pelos “gordos” como uma faca afiada para o debate. E, devo admitir, raras vezes ia para “as cordas”. Em outras, ganhava por nocaute. Mesmo adversários respeitavam a inteligência do “gordo. Por exemplo, a economista de esquerda Maria da Conceição Tavares, infelizmente, também falecida recentemente aos 93 anos de idade, costumava referir-se a ele como o “Doutor Delfim”. Aliás, bons tempos aqueles em que as pessoas costumavam respeitar as opiniões contrárias.
Quando o “Milagre Econômico” acabou – uma parte explicável pela alta do preço do petróleo e, outra, pelo aumento da inflação nacional – os militares foram embora e a democracia ressurgiu. Mas Delfim não foi pego de surpresa: elegeu-se por vários mandatos como deputado federal por um partido de direita (Partido Progressista-PP). Acho que, do ponto de vista ideológico, Delfim se assumia como um liberal progressista, seja lá o que isso signifique.
Enquanto viveu, Delfim não parou nunca de nos surpreender. Quem adivinharia que ele iria se tornar conselheiro de Lula e de Dilma, nos governos do PT? Inclusive teve uma coluna numa revista semanal governista na época (“Carta Capital”). Houve até boatos de que teria sido sondado para assumir o ministério da Fazenda ou o BNDES, no segundo governo Lula, mas que teria recusado os possíveis convites.
Em sua defesa, pode ser argumentado que Delfim nunca foi um monetarista ortodoxo, como costumam ser a maioria dos economistas de direita, seguidores de Milton Friedman. Conceição Tavares o classificava como um “economista estruturalista”. Tampouco seguiu, ao “pé da letra”, as recomendações do FMI para o país. Ao contrário, até deixou de cumprir várias das chamadas “Cartas de Intenção”, que era o ajuste das metas econômicas aos limites estabelecidos pelo Fundo. Acho que Delfim Netto está mais próximo da resposta dada por Keynes (célebre economista inglês) a alguém que o acusava de mudar de opinião seguidas vezes. Ele disse: “quando as circunstâncias mudam, eu troco de opinião. O Sr. Não?”.
No que se refere a sua participação na ditadura militar, ele próprio argumentou em sua defesa, na entrevista dada ao portal UOL, em 2021:
"Eu voltaria a assinar o AI-5. Eu tenho dito isso sempre. Aquilo era um processo revolucionário, vocês têm que ler jornais daquele momento. As pessoas não conhecem história, ficam julgando o passado, como se fosse o presente. Naquele instante foi correto, só que você não conhece o futuro [...] Hoje, nós sabemos para onde queremos ir e aprendemos que só existe um mecanismo para administrar esse país e levá-lo ao progresso, que é o fortalecimento do processo democrático. Isso é um aprendizado".
Esse é o julgamento da sua consciência. Porém, como sempre, caberá à história o julgamento final.
Sobre o(a) autor(a)
Por José Maria PereiraDoutor em Economia, professor aposentado do departamento de Economia e Relações Internacionais da UFSM e também da UFN