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14/04/2021
Amarildo Luiz Trevisan
Professor Titular de Filosofia da Educação. Membro do departamento de Fundamentos da Educação da UFSM
Em abril de 1945, quando a Resistência havia tomado a cidade de Milão, na Itália, do domínio dos fascistas e Umberto Eco ainda era um garoto, fora testemunho da cena em que Mimo, chefe da Resistência ao fascismo na região, apareceu no púlpito da Prefeitura para saudar a população. Apesar da multidão gritar e saudar os partigiani, Mimo, pálido, apoiado em muletas e com voz rouca, ao contrário de Mussolini e de seus discursos grandiloquentes, apenas murmurou: “Cidadãos amigos. Depois de tantos sacrifícios dolorosos... aqui estamos. Glória aos que caíram pela liberdade” (2018, p. 11). O comentário de Umberto Eco não deixa a menor dúvida: “eu tinha aprendido que liberdade de palavra significa libertar-se da retórica” (2018, p. 11).
Este episódio infantil vivido por Umberto Eco, e narrado no seu livro Fascismo eterno pode ajudar a esclarecer melhor a questão que aqui pretendo enfatizar. A política do ódio aos pobres e aos grupos diferentes, que Adela Cortina chama de “aporofobia” (2017), e a apologia ao racismo e à discriminação ao outro de forma generalizada expõem a fratura social em que vive hoje boa parte do mundo. Estamos imersos na cultura política do ódio (Gallego, 2018), sem saber exatamente qual o seu significado filosófico, político e social e muito menos como reagir diante de tais descasos de insensibilidade para com a dor do outro.
Citamos, como exemplo, o referendo que decidiu a saída da Inglaterra da União Europeia (também chamado BREXIT - Britain exit, expressão inglesa que significa o projeto de saída da Inglaterra da União Europeia), a eleição de Trump nos Estados Unidos da América e de Bolsonaro no Brasil, o ressurgimento de uma ultradireita fascista na Itália e na Espanha, entre outros países afetados, o que sinaliza que estamos imersos em um processo de decadência da democracia representativa, impulsionado pelas redes sociais.
Observamos que a nossa sociedade está passando por uma onda de teorias negacionistas da realidade que teve, como uma de suas causas prováveis, o negacionismo da própria ideia de teoria. Na universidade sinto que este movimento só aumentou nos últimos anos. Sob a bandeira de valorização da prática, a teoria passou a ser desconsiderada, quando não banida do horizonte das discussões como um ser alienígena. Quem insistia em discutir tal assunto, ou temas relacionados, acabava praticamente falando sozinho. Sejam eventos, bancas de dissertações ou teses, ou mesmo nas aulas. Certa vez ouvi um arguidor perguntar para alguém que defendia sua tese de doutorado: você acha que este trabalho vai ser lido pelos professores das redes, escrevendo desta maneira?
Entendemos assim que, sem critérios para distinguir uma teoria de um Fake News, as pessoas passaram a abraçar qualquer coisa, inclusive o receituário do Kit Covid, sem comprovação científica de sua eficácia. Estamos indo bem: de uma discussão do Kit Gay para a do Kit Covid. Daí que aderir a tese de que a terra é plana, do globalismo, da supremacia branca, a retomada do armamentismo, o orgulho exacerbado da nação e do patriotismo e a visão afeita a uma cultura machista, misógina e homofóbica, etc., não falta muita coisa. Tais crenças são largamente difundidas nas redes sociais atualmente, incluindo a defesa do negacionismo (das vacinas, do aquecimento global, contra as medidas de proteção ao coronavírus, da curvatura da terra, e assim por diante), e ainda, da ditadura no Brasil e do holocausto da 2ª guerra.
Percebemos que o que está em curso no Brasil e no mundo é uma briga política por um tipo de memória do passado. O filme Negação (2017), disponível na Netflix, aborda bem essa problemática, mostrando que a questão do negacionismo, no caso, do holocausto, está muito forte inclusive nos países ricos, envolta na problemática dos discursos de ódio e o seu limite da liberdade de expressão. Tais práticas são amigas do fascismo e é por isso que Jason Stanley elege em seu livro “Como funciona o fascismo: A política do “nós” e “eles” como valores da retórica fascista, além do endeusamento do passado mítico, a paixão pela hierarquia, a lei e ordem, pela vitimização, ansiedade sexual, também o anti-intelectualismo e a irrealidade.
É importante tomar consciência desses contrapontos, caso contrário podemos recair novamente no que aconteceu no Brasil e no mundo recentemente. Em nosso caso, quando no período de redemocratização ficamos embalados nos sonhos de consumo, da equivalência da nossa moeda diante do dólar, que permitiu à população mais pobre ascender social e economicamente, mas também à classe média viajar e aumentar o seu poder de consumo. Porém, nos despreocupamos de consolidar uma memória da ditadura e de todas as suas consequências negativas para a liberdade e para o estado democrático e de direito. E vimos voltar, com muita força nas manifestações de ruas que ocorreram de 2013 em diante, os apelos de jovens principalmente pedindo a volta da ditadura, porque não consolidamos uma memória desse estado de exceção.
Mas se toda crise representa também uma oportunidade, é preciso refletir até que ponto as escolas e universidades, seus cursos e programas, estão contaminados por esta retórica negacionista, ou se vão voltar às origens e ser portadores do conhecimento e do esperado esclarecimento?
Referências:
CORTINA, A. Aporofobia, el rechazo al pobre: Um desafio para la democracia. Barcelona: Paidós, 2017.
ECO, U. O fascismo eterno. Rio de Janeiro: Record. 2018
GALLEGO, E. S. (Org.). O ódio como política. A reinvenção das direitas no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018.
STANLEY, J. Como funciona o fascismo: A política do “nós” e “eles”. Porto Alegre: L&PM. 2018.