É possível baixar os juros? Publicada em 09/05/2023 3037 Visualizações
Após ser eleito, o presidente Lula – e óbvio o seu ministro da Fazenda (Fernando Haddad) – passaram a criticar a atual política de taxa de juros alta do Banco Central (Bacen), como o principal entrave à retomada do crescimento e a geração de novos empregos, prometida na sua campanha. Devendo a sua eleição à população pobre, sobretudo aos seus conterrâneos nordestinos, chegou a hora de Lula pagar a conta. E, a bem da verdade, ele tem se esforçado nesse sentido. Exemplos: o aumento do Bolsa Família para R$ 600 e a ajuda de R$ 150,00 para as famílias com filhos menores; a nova política de valorização real do salário-mínimo; a antecipação do 13º dos aposentados e pensionistas do INSS; o retorno do programa “Minha casa, minha vida”, etc.
Mas, segundo o Presidente, para “entregar” os empregos que prometeu, precisa que o Banco Central baixe a taxa de juros básica da economia (SELIC), que repercute nas taxas de juros cobradas no mercado bancário (CDI). Não passa um dia sequer, sem que ele acuse o Bacen como responsável por colocar essa “camisa de força” na economia. Como não poderia ser diferente, acabou entrando em “rota de colisão” com o presidente do Banco Central (Roberto Campos Neto), homônimo do famoso economista de direita, que, no caso, era o seu avô.
Olhando pelo gráfico (abaixo), Lula está coberto de razão ao reclamar da demora do Bacen para baixar os juros. O ápice de crescimento dos preços no país foi em abril do ano passado, quando a inflação acumulada em doze meses ficou em 12,13%. Nesse mês, a SELIC já havia iniciado a sua trajetória de alta, e estava em 11,75%. Em maio, a inflação caiu um pouco (para 11,73%), mas o Bacen subiu a SELIC em mais um ponto percentual (para 12,75%). No mês seguinte, a inflação se manteve estável, mas a SELIC avançou em meio ponto percentual (para 13,25%) para chegar, no mês seguinte à taxa atual (de 13,75%). Observe que, nesse mês (julho de 2022), a inflação dos doze meses (10,07%) entrava em queda livre, passando de dois dígitos para um dígito – até chegar no patamar mais baixo (4,65%), no mês de março do corrente.
Diante desses dados indiscutíveis, de refluxo da escalada inflacionária, por que o Banco Central não baixa a SELIC, como parece ser o óbvio? É porque a força das ideias erradas desafia a própria lógica. Campos Neto, apesar do termo estar um pouco fora de moda, é um monetarista. Não vou cometer a indiscrição de dizer que herdou esse traço do seu avô, que era, mesmo sendo de direita, um desenvolvimentista. O que a esquerda o acusava, na época da ditadura militar, era de ser muito pró-americano, o que lhe rendeu o apelido de Bob Fields.
Com muito boa vontade, podemos imaginar que a resistência do Comitê de Política Monetária (COPOM) em baixar os juros se deve ao fato de seus componentes acreditarem que estamos vivendo uma inflação de demanda. O que significa isso? Que a demanda por bens e serviços da economia é maior do que a respectiva oferta. Ora, pode ser que isso ocorra em alguns setores, por causas específicas, como a falta de matérias-primas importadas (como chips, fertilizantes), mas não pode ser generalizada, caso contrário a inflação que engloba todos os setores (IPCA) não teria se desacelerado.
Acontece que a resistência do COPOM em reduzir a SELIC se daria por “razões técnicas”, ou seja, foi o aumento da taxa de juros que “segurou” a alta da inflação e que, como existem ainda “focos de incêndio” (como a alta no preço dos alimentos) presentes em alguns setores, é melhor “não baixar a guarda”. Mas quanto custa essa convicção errada ao país? Primeiro, é discutível que a política de juros altos tenha uma relação direta com a queda da inflação. Ela não deve ser a única política nesse sentido, pois a pretexto de “curar a febre” pode matar o paciente, ou seja, causar recessão e, portanto, aumento do desemprego. Segundo, por que manter a taxa de juros real (descontada a inflação) mais elevada do mundo (9%, em março) por tanto tempo, quando poderia reduzir a taxa de juros gradualmente, alinhada à queda da inflação? Aliás, embora seja consenso que existe uma relação inversa em juros e inflação, como saber se o Banco Central não exagerou na dose? Ou seja, o Bacen poderia manter a inflação de “rédeas curtas”, sem a necessidade de ter uma SELIC tão alta como a atual.
É verdade que estamos diante de um processo inflacionário em escala mundial e isso implica em aumento de custos dos insumos, pagos em moeda estrangeira. Taxa de inflação de 8% anual, é algo raro em países como os Estados Unidos, e por isso, recentemente, o Federal Reserve (banco central norte-americano) elevou a taxa de juros anual para o intervalo 5,25%-5,50%, o mesmo acontecendo na União Europeia (na casa de 3,5%) Na minha opinião, este é o principal risco a um possível retorno da inflação brasileira (embora improvável). Ou seja, a inflação atual é de custos e não de demanda. Não faz sentido pensar em inflação de demanda se a economia não está em expansão. Mas o COPOM ainda tem uma “carta na manga” para não mexer nos juros: o argumento de que o aumento da demanda teria como causa o excesso de gastos do governo.
Tudo bem, a pandemia causou um “estrago” inevitável nas contas públicas. O teto de gastos foi “furado” várias vezes. Mas havia outra saída? Reorganizar as contas públicas, de fato, tem urgência. O projeto do governo parece um tanto complicado. Combina regras para o resultado primário do governo (diferença entre receita e despesa, descontados os juros da dívida pública interna) e de controle dos gastos públicos. As despesas do governo poderão crescer entre 0,6% e 2,5% acima da receita do ano anterior em valores reais. Nesse intervalo, os gastos poderão crescer até 70% da variação da receita do ano anterior. Essa é a parte principal da proposta que vem sendo divulgada pela imprensa. Muita coisa pode mudar ainda, pois sua aprovação no Congresso exige maioria de 2/3, pois implica em mudança na Constituição.
O projeto já foi finalizado e entregue ao Congresso para discussão da matéria. Não deve ter muita dificuldade de aprovação (apesar da base parlamentar do governo não ser confiável), porque, neste momento, é preciso aprovar algo para ficar no lugar do “teto de gastos”. Lula ficou frustrado, porque esperava ser este um “sinal” para o Banco Central iniciar o movimento de diminuição da SELIC. Não só isso não aconteceu, como o COPOM manteve a taxa atual de juros e não descartou uma possível alta, o que soa como provocação ao governo.
Então, por que Lula não demite o presidente do Bacen e membros do COPOM? Não tenho dúvida de que, se ele pudesse, faria isso. Ocorre que ele não tem esse poder, porque Campos Neto (escolhido por Bolsonaro) tem um mandato fixo, de 4 anos, que não coincide com o mandato de Presidente da República, o mesmo acontecendo com os 8 diretores do Bacen que compõem o COPOM. Isso está em vigor desde fevereiro de 2021, quando o Banco Central, a exemplo do Federal Reserve norte-americano se tornou independente. Por outro lado, a autonomia do Bacen, na época, foi aprovada, por larga margem, pelo Congresso. Hoje, com sua fraca base parlamentar, não teria chance de mudar a lei. Pode ir substituindo alguns diretores, na medida que vençam seus mandatos. Mas terá que “engolir” Campos Neto até o final de 2024, quando se encerra o seu mandato.
A tese de autonomia do Banco Central é antiga e controversa. Sempre teve o apoio do setor bancário, mas nenhum governo de centro ou de esquerda colocou em prática a ideia. Entre os candidatos à Presidência, lembro que essa tese surgiu no programa de campanha de Marina Silva, mas foi abandonada face às críticas que sofreu. Bolsonaro deixou o assunto aos cuidados do ministro da Economia (Paulo Guedes), que não perdeu a oportunidade. Hoje, fica claro, que o governo perdeu a condição de fazer política monetária que, à sua revelia, é executada por um Comitê de técnicos, a maioria recrutados dos maiores bancos do país, que não tiveram um único voto nas últimas eleições. Já Lula, com mais de 50 milhões de votos, só pode fazer o que vem fazendo: reclamar...
Sobre o(a) autor(a)
Por José Maria PereiraDoutor em Economia, professor aposentado do departamento de Economia e Relações Internacionais da UFSM e também da UFN